Quando li o
livro de Theodore, senti um profundo alívio, do qual quero comentar depois. Neste
primeiro momento, furto-me a discorrer sobre a possibilidade apontada pelo
autor de a psicologia como tratamento favorecer a subversão da moralidade.
Ainda que eu
não seja um psicólogo de formação, sempre gostei de estudar e tentar entender a
mente humana, principalmente a minha. Durante muitos anos, mais ou menos entre
2007 e 2012, quase tudo o que eu li tinha relação com a psicologia de uma forma
ou de outra. Li obras de muitos autores, incluindo as fundamentais de Freud,
mas tive contato mais profundo com a obra do psicólogo suíço Carl Jung. Li
praticamente toda sua coleção, revisitando frequentemente alguns livros-chave.
Peço desculpas
ao leitor por esta grande introdução falando de mim mesmo, mas com isso queria demonstrar
que tenho algum trato com a matéria a ponto de poder tecer minhas próprias considerações
sobre a psicologia, mantendo todo o cuidado de ater a esta mesma opinião um
panorama que a respalde mediante dados retirados da realidade. Com isso quero
dizer também que evito tecer considerações baseadas unicamente em meus próprios
sentimentos para construir uma ideia própria sobre a psicanálise.
Pois bem,
tendo dito tudo isso, vamos ao livro de Theodore Dairymple. Seu livro pareceu-me
muito com um conjunto ou coleção de opiniões cujo respaldo na realidade é evocado
mediante dados sem critério de apresentação, que voam de cá para lá em cada
parágrafo do texto sem sustentação duradoura. Ele atribui às deduções que
apresenta (não a todas obviamente, mas falo aqui da tonalidade do livro) ele
apresenta deduções como se fossem leis, e evoca o tempo inteiro a depreciação
julgadora. Tenho que dizer que não era bem isso o que eu esperava de um livro
com um título tão provocativo, que parecia se propor a discutir e demonstrar em
suas 96 páginas “como a psicologia subverte a moralidade”. Para mim, não chegou
nem perto disso.
Dr. Sigmund Freud, criador da psicanálise |
Ainda segundo
o autor, “as reivindicações de Freud de que foi um cientista não resistem ao
escrutínio”, embora ele não apresente os dados de tal escrutínio e nem sequer
aponte alguma leitura ou contexto no qual o leitor possa encontrar os alicerces
de sua crítica, fundada em bases que não aparecem nunca, a não ser sob as formas
pelas quais o tal freudismo é acusado de falso, absurdo, desavergonhado etc. Embora
sustente em uma única linha que “Freud era indiscutivelmente brilhante, muito
culto e bom escritor”, Theodore apresenta em seguida um longo parágrafo onde
afirma que “é historicamente comprovado que Freud tinha o hábito de mentir”,
“fabricava provas”, era “um plagiador, que não reconhecia e deliberadamente
negava a origem das suas ideias”. Além disso, era também um “manipulador de
pessoas”, “ávido e inescrupuloso nas finanças” e, finalmente, o “fundador de
uma seita” (a própria psicanálise). Tal seleção de fatos apresentados em sequência
podem produzir no leitor um sentimento de revolta e alienação contra Freud, pois
ele é “plagiador, avaro, mentiroso” etc. Apelando de tal forma ao sentimento do
leitor, Theodore nada mais faz que trazer à tona preconceitos e revelações, afinal
de contas ele diz que tais coisas são “historicamente comprovadas”, mas não
aponta ao menos um exemplo de onde o plágio, a avareza e a mentira se dão, abrangendo
com isso um terreno perigoso para argumentação, segundo o qual o principal
argumento contra alguma coisa é simplesmente não gostar dela e atirar pedras.
É claro que
ele acerta em alguns pontos, como ao discutir a projeção e o valor simbólico do
mundo, segundo o qual seria necessário interpretar os significados ocultos que
podem estar atrás de cada pensamento, o que pode levar à paranoia. No entanto,
este é propriamente um método psicanalítico de análise da paranoia, o que
significa que a matéria não é tão inconsistente assim. Em outro momento ele
aborda a questão das análises intermináveis (muitas pessoas que já fizeram
algumas sessões de psicanálise experimentaram essa sensação frustrante de nunca
conseguir chegar ao “fim da análise”), mas tudo neste livro é discutido muito
ao rés-do-chão, assemelhando-se em muito ao modelo utilizado pelos autores de livros
de autoajuda, que Theodore critica ferozmente em seu “prefácio à edição
brasileira”.
Quando discute
que a psicanálise se baseia na descoberta de desejos reprimidos e na consecução
destes, o autor conclui que tal atitude provocaria uma patologia na qual a
autoindulgência seria a meta, pois a frustação do desejo é, segundo o que ele
apresenta, a raiz da patologia. Em outras palavras, a psicanálise, segundo o
autor, é uma ciência que afirma que precisamos descobrir nossos desejos
reprimidos para realizá-los, e a magia acontece através de evasivas admiráveis
que levariam o sujeito liberto a encontrar a tal subversão moral citada no
subtítulo. No entanto, até onde posso afirmar, e de forma muito simplista, a
psicanálise aponta para o fato de que devemos trazer nossos desejos à tona ao
buscar pela sua origem, para que assim possamos torná-los conscientes e lidar com
eles de forma sadia. Jung diz que “até você se tornar consciente, o
inconsciente vai dirigir sua vida, e você vai chamá-lo de destino”, e o que ele
quer dizer com isso remonta à necessidade em reconhecer os conteúdos reprimidos
no inconsciente para que você possa saber algo sobre si mesmo de forma consciente,
de forma a não ser levado por aí mediante pulsões e desejos que estão “fora de
seu controle”. Talvez, quando você se deparar com tais “pulsões e desejos” de forma
consciente, a última coisa que você queira seja realizá-los. No entanto, Theodore
parte do pressuposto de que a ruína moral contemporânea surge com o liberalismo
moral proposto pela psicanálise, que sugere a descoberta do desejo para que o indivíduo
possa estar livre para realizá-lo. Eu
pelo menos nunca encontrei suporte psicanalítico em qualquer estudo sério que
apontasse na direção da satisfação indiscriminada dos desejos (o que realmente levaria
à subversão da moralidade apregoada no subtítulo do livro). A satisfação
indiscriminada do desejo leva à doença. Qualquer pessoa que já esteve mergulhada
em fantasias projetadas no mundo pode atestar isso, desde que as tenha
reconhecido como tais, como quer a psicanálise. Certa vez um amigo disse-me que
seu psicólogo havia sabiamente lhe apontado para o fato de que muitas fantasias
devem ficar apenas no campo das fantasias. Esse é o ponto. A psicanálise não busca a satisfação,
mas a descoberta do desejo reprimido, que poderia levar o paciente a uma
escolha consciente, ao invés de ser levado por impulsos de desejos
inconscientes.
Dr. Carl Jung, criador da Psicologia Analítica |
Exemplos como
estes são abundantes em todo o livro, que vai criticar ainda o behaviorismo, a
negação da identidade pessoal (inexistência de um eu), a administração de
medicamentos e vários outros temas que já são polêmicos há anos, ou seja, não
foram uma descoberta apontada por ele. Quase toda a discussão levantada por ele
no livro baseia-se em preconceitos aborrecidos que exalam um mal humor possível
até mesmo de sentir; mal humor que contamina o leitor, em certo sentido. Textos
que buscam convencer o leitor através dos sentimentos destes são para mim
passíveis de desconfiança, no mínimo. Leia o livro de Theodore Dalrymple com distanciamento
crítico, senão você pode ser inflamado.
Enfim, comecei
este texto dizendo do alívio que senti ao ler o livro de Theodore, mas não
posso deixar de dizer que fui irônico com este comentário. É uma coisa feia, eu
sei, mas fiquei aliviado em não encontrar ali a refutação que há tantos anos procuro, ouço
falar, mas não encontro com sustentação válida; uma refutação que
comprove os seguintes fatos evocados costumeiramente por algumas pessoas: que a
psicanálise não é uma ciência, que não se funda em dados comprováveis e que não
tem valor terapêutico verdadeiramente útil. Até hoje, ninguém conseguiu me convencer
disto. O livro de Theodore tampouco foi capaz de fazer esta crítica de
maneira séria e honesta. Não digo a crítica parcial, pois muita coisa deve ser descoberta
como erro nos estudos psicanalíticos para ser repensada e assim fazer com que
haja um salto para frente. Certamente, ele
apontou alguns pontos de vista válidos como crítica, no entanto todos eles surgem
de dentro de algo que existe, ou seja, não foram críticas que desmantelaram uma
farsa, mas que revelaram um ou outra falha dentro do contexto interno do mesmo sistema psicanalítico que ele visava destruir “de fora”. Por fim, caso algum
leitor saiba de um trabalho sério voltado para a refutação da psicanálise (não
a pontos críticos no contexto interno da psicanálise) eu gostaria de conhecer,
embora desconfie que tal trabalho não seja realmente possível.
.