segunda-feira, 24 de maio de 2021

Evasivas Admiráveis

 



O livro Evasivas Admiráveis, escrito por Theodore Dalrymple (pseudônimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels), tem registrada sua primeira edição no Brasil em 2017 pela editora “É Realizações”. A impressão do livro vem com tipografia nítida que se destaca no papel cartonado de grossa gramatura, mas ainda assim não o torna largo na lombada. Seus 11 capítulos cabem em apenas 96 páginas. De toda forma, o projeto gráfico e a tipografia são bem realizados.

Quando li o livro de Theodore, senti um profundo alívio, do qual quero comentar depois. Neste primeiro momento, furto-me a discorrer sobre a possibilidade apontada pelo autor de a psicologia como tratamento favorecer a subversão da moralidade.

Ainda que eu não seja um psicólogo de formação, sempre gostei de estudar e tentar entender a mente humana, principalmente a minha. Durante muitos anos, mais ou menos entre 2007 e 2012, quase tudo o que eu li tinha relação com a psicologia de uma forma ou de outra. Li obras de muitos autores, incluindo as fundamentais de Freud, mas tive contato mais profundo com a obra do psicólogo suíço Carl Jung. Li praticamente toda sua coleção, revisitando frequentemente alguns livros-chave.

Peço desculpas ao leitor por esta grande introdução falando de mim mesmo, mas com isso queria demonstrar que tenho algum trato com a matéria a ponto de poder tecer minhas próprias considerações sobre a psicologia, mantendo todo o cuidado de ater a esta mesma opinião um panorama que a respalde mediante dados retirados da realidade. Com isso quero dizer também que evito tecer considerações baseadas unicamente em meus próprios sentimentos para construir uma ideia própria sobre a psicanálise.

Pois bem, tendo dito tudo isso, vamos ao livro de Theodore Dairymple. Seu livro pareceu-me muito com um conjunto ou coleção de opiniões cujo respaldo na realidade é evocado mediante dados sem critério de apresentação, que voam de cá para lá em cada parágrafo do texto sem sustentação duradoura. Ele atribui às deduções que apresenta (não a todas obviamente, mas falo aqui da tonalidade do livro) ele apresenta deduções como se fossem leis, e evoca o tempo inteiro a depreciação julgadora. Tenho que dizer que não era bem isso o que eu esperava de um livro com um título tão provocativo, que parecia se propor a discutir e demonstrar em suas 96 páginas “como a psicologia subverte a moralidade”. Para mim, não chegou nem perto disso.

Dr. Sigmund Freud,
criador da psicanálise

Logo no início, o autor afirma que “o ego, o id e o superego [são] coisas que não podem ser vistas, mas nas quais se acredita fortemente, pois proveem explicações para sentimentos indesejados, experiências e comportamentos, bem como a esperança de que sejam eliminados.” Depois ele acusa tais explicações psicológicas de superstições, por serem baseadas em pressupostos “que não se podem ver”, ou seja, para o autor, o id, o ego e o superego não seriam nada mais do que crenças. No entanto, muitas afirmações constantes como válidas no mundo da ciência são aceitas como existentes sem comprovação, como o fenômeno da formação do pensamento, por exemplo. O pensamento é um fenômeno plenamente comprovável, mas até hoje não se sabe com certeza como é produzido. Portanto “ver” alguma coisa não é sinônimo da atestação de sua existência, mesmo que tal ato de “ver” seja talvez uma metáfora para a comprovação. Não vemos o oxigênio, mas podemos “vê-lo” através de modelos. O ego, o id e o superego também são modelos, que apresentam contornos observáveis na mente e nos atos humanos. No entanto, Theodore não faz nenhuma crítica ao modelo propriamente dito, apenas se restringe a chamar o freudismo (sic) de falso e absurdo por propor “coisas que não se pode ver”.

Ainda segundo o autor, “as reivindicações de Freud de que foi um cientista não resistem ao escrutínio”, embora ele não apresente os dados de tal escrutínio e nem sequer aponte alguma leitura ou contexto no qual o leitor possa encontrar os alicerces de sua crítica, fundada em bases que não aparecem nunca, a não ser sob as formas pelas quais o tal freudismo é acusado de falso, absurdo, desavergonhado etc. Embora sustente em uma única linha que “Freud era indiscutivelmente brilhante, muito culto e bom escritor”, Theodore apresenta em seguida um longo parágrafo onde afirma que “é historicamente comprovado que Freud tinha o hábito de mentir”, “fabricava provas”, era “um plagiador, que não reconhecia e deliberadamente negava a origem das suas ideias”. Além disso, era também um “manipulador de pessoas”, “ávido e inescrupuloso nas finanças” e, finalmente, o “fundador de uma seita” (a própria psicanálise). Tal seleção de fatos apresentados em sequência podem produzir no leitor um sentimento de revolta e alienação contra Freud, pois ele é “plagiador, avaro, mentiroso” etc. Apelando de tal forma ao sentimento do leitor, Theodore nada mais faz que trazer à tona preconceitos e revelações, afinal de contas ele diz que tais coisas são “historicamente comprovadas”, mas não aponta ao menos um exemplo de onde o plágio, a avareza e a mentira se dão, abrangendo com isso um terreno perigoso para argumentação, segundo o qual o principal argumento contra alguma coisa é simplesmente não gostar dela e atirar pedras.

É claro que ele acerta em alguns pontos, como ao discutir a projeção e o valor simbólico do mundo, segundo o qual seria necessário interpretar os significados ocultos que podem estar atrás de cada pensamento, o que pode levar à paranoia. No entanto, este é propriamente um método psicanalítico de análise da paranoia, o que significa que a matéria não é tão inconsistente assim. Em outro momento ele aborda a questão das análises intermináveis (muitas pessoas que já fizeram algumas sessões de psicanálise experimentaram essa sensação frustrante de nunca conseguir chegar ao “fim da análise”), mas tudo neste livro é discutido muito ao rés-do-chão, assemelhando-se em muito ao modelo utilizado pelos autores de livros de autoajuda, que Theodore critica ferozmente em seu “prefácio à edição brasileira”.

Quando discute que a psicanálise se baseia na descoberta de desejos reprimidos e na consecução destes, o autor conclui que tal atitude provocaria uma patologia na qual a autoindulgência seria a meta, pois a frustação do desejo é, segundo o que ele apresenta, a raiz da patologia. Em outras palavras, a psicanálise, segundo o autor, é uma ciência que afirma que precisamos descobrir nossos desejos reprimidos para realizá-los, e a magia acontece através de evasivas admiráveis que levariam o sujeito liberto a encontrar a tal subversão moral citada no subtítulo. No entanto, até onde posso afirmar, e de forma muito simplista, a psicanálise aponta para o fato de que devemos trazer nossos desejos à tona ao buscar pela sua origem, para que assim possamos torná-los conscientes e lidar com eles de forma sadia. Jung diz que “até você se tornar consciente, o inconsciente vai dirigir sua vida, e você vai chamá-lo de destino”, e o que ele quer dizer com isso remonta à necessidade em reconhecer os conteúdos reprimidos no inconsciente para que você possa saber algo sobre si mesmo de forma consciente, de forma a não ser levado por aí mediante pulsões e desejos que estão “fora de seu controle”. Talvez, quando você se deparar com tais “pulsões e desejos” de forma consciente, a última coisa que você queira seja realizá-los. No entanto, Theodore parte do pressuposto de que a ruína moral contemporânea surge com o liberalismo moral proposto pela psicanálise, que sugere a descoberta do desejo para que o indivíduo possa estar livre para realizá-lo.  Eu pelo menos nunca encontrei suporte psicanalítico em qualquer estudo sério que apontasse na direção da satisfação indiscriminada dos desejos (o que realmente levaria à subversão da moralidade apregoada no subtítulo do livro). A satisfação indiscriminada do desejo leva à doença. Qualquer pessoa que já esteve mergulhada em fantasias projetadas no mundo pode atestar isso, desde que as tenha reconhecido como tais, como quer a psicanálise. Certa vez um amigo disse-me que seu psicólogo havia sabiamente lhe apontado para o fato de que muitas fantasias devem ficar apenas no campo das fantasias. Esse é o ponto.  A psicanálise não busca a satisfação, mas a descoberta do desejo reprimido, que poderia levar o paciente a uma escolha consciente, ao invés de ser levado por impulsos de desejos inconscientes.

Dr. Carl Jung, criador da
Psicologia Analítica
        Quanto ao método utilizado por Theodore em seu livro, não podemos negar que haja um esforço por parte do autor em tentar dar suporte aos seus argumentos. Através de uma analogia literária, por exemplo, Theodore utiliza versos do poeta britânico William Blake para respaldar com autoridade poética a noção de satisfação de desejos como uma espécie de conselho deturpado dado por Freud por intermédio da psicanálise, que provocou a ruína moral contemporânea. Segundo a analogia de Theodore, o poeta Blake estendeu a bandeira da modernidade ao dizer que “aquele que deseja mas não age gera a pestilência”. No entanto, Theodore oculta que esta frase se encontra no livro Casamento do Céu e do Inferno, e faz parte da seção “Provérbios do Inferno”, onde a sabedoria do inferno cita tais regras. Portanto, liberar desejos indiscriminadamente é um conselho vindo diretamente do “inferno” cantado por Blake, e não da psicanálise.

Exemplos como estes são abundantes em todo o livro, que vai criticar ainda o behaviorismo, a negação da identidade pessoal (inexistência de um eu), a administração de medicamentos e vários outros temas que já são polêmicos há anos, ou seja, não foram uma descoberta apontada por ele. Quase toda a discussão levantada por ele no livro baseia-se em preconceitos aborrecidos que exalam um mal humor possível até mesmo de sentir; mal humor que contamina o leitor, em certo sentido. Textos que buscam convencer o leitor através dos sentimentos destes são para mim passíveis de desconfiança, no mínimo. Leia o livro de Theodore Dalrymple com distanciamento crítico, senão você pode ser inflamado.

Enfim, comecei este texto dizendo do alívio que senti ao ler o livro de Theodore, mas não posso deixar de dizer que fui irônico com este comentário. É uma coisa feia, eu sei, mas fiquei aliviado em não encontrar ali a refutação que há tantos anos procuro, ouço falar, mas não encontro com sustentação válida; uma refutação que comprove os seguintes fatos evocados costumeiramente por algumas pessoas: que a psicanálise não é uma ciência, que não se funda em dados comprováveis e que não tem valor terapêutico verdadeiramente útil. Até hoje, ninguém conseguiu me convencer disto. O livro de Theodore tampouco foi capaz de fazer esta crítica de maneira séria e honesta. Não digo a crítica parcial, pois muita coisa deve ser descoberta como erro nos estudos psicanalíticos para ser repensada e assim fazer com que haja um salto para frente.  Certamente, ele apontou alguns pontos de vista válidos como crítica, no entanto todos eles surgem de dentro de algo que existe, ou seja, não foram críticas que desmantelaram uma farsa, mas que revelaram um ou outra falha dentro do contexto interno do mesmo sistema psicanalítico que ele visava destruir “de fora”. Por fim, caso algum leitor saiba de um trabalho sério voltado para a refutação da psicanálise (não a pontos críticos no contexto interno da psicanálise) eu gostaria de conhecer, embora desconfie que tal trabalho não seja realmente possível.


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domingo, 16 de maio de 2021

Tornados são eventos que não costumam aparecer no Brasil.

 

Tornado em Xanxerê, SC. 


Tornados são eventos que não costumam aparecer no Brasil. Pode ter acontecido uma vez ou outra, como foi o caso em Santa Catarina, se não me engano no ano de 2004. O certo é que tornados, quando acontecem no Brasil, são exceções. Eu mesmo nunca vi. Só uma vez, quando eu estava chegando a Brasília de ônibus, eu vi um redemoinho mirim formado por uma poeirada de areia seca marrom que girava, nada ameaçadora. Estava mais para ridículo, embora auspicioso, porque eu nunca tinha visto nada semelhante.

No entanto, tornados mesmo parece que no Brasil não têm. Nos Estados Unidos é diferente. Dizem que por lá as pessoas precisam de ter um lugar para se esconder no porão na ocorrência de um tornado. Pode ser que a fúria do evento leve embora a casa toda, mas se os habitantes do lugar estiverem escondidos abaixo da linha do solo, o tornado não os alcançará e ocorrerá um livramento difícil. Mas melhor isto que encarar um tornado, não é verdade?

Uma vez eu vi uma reportagem no Canal Arte 1 sobre uma instalação de um artista que eu não lembro o nome. Peço desculpas por isto, mas eu não lembro mesmo. Tanto que em outros tempos já tentei até mesmo pesquisar sobre este artista, porque eu queria assistir novamente aquela reportagem, mas nunca achei. A reportagem falava de uma instalação na qual o artista apresentava uma proposta que era o seguinte: ele escolhia tornados que fossem classificados como “moderados”, e seguia em direção a um deles a pé, segurando uma câmera na mão. No caminho, o som da filmagem acompanhava um terrível rodopio de folhas e gravetos lançados ao ar em giros mais ou menos assustadores, e tudo aquilo gerava uma imensa aflição, porque aquele era um cenário para ser de fuga, mas o homem partia para cima daquele tornado com grande convicção, e prosseguia filmando tudo. No entanto, embora todo o mal estar que a cena produzisse, tudo aquilo suspendia o tempo durante aquela audiência, e eu percebia a mim mesmo em um registro precioso e, de certa forma, magnético. A gravação do artista permitia ouvir o som da fúria que aquele tornado queria alimentar com seu giro que raspava o mundo. E enquanto aquele homem seguia com sua câmera até lá, os arredores visíveis na tela gradualmente tomavam um corpo cinza, veloz e barulhento, até que ele atravessava aquilo que poderia chamar aqui de “parede” do tornado e adentrava o centro. Você acompanhando tudo aquilo tinha medo dele morrer naquele instante, mas quando finalmente aquele homem alcançava o centro, suspendiam-se o som e a fúria. No centro, você podia observar aquela violência toda através de uma espécie de vácuo. No centro do tornado, embora o cinza tenebroso pudesse ser observado em toda sua violência, não havia mais aquela raspagem do mundo, pois no centro do tornado pairava um som opaco e não havia mais vento, e o próprio tornado, quase como se fosse inofensivo, não alcançava atingir aquele pudesse observá-lo desde seu centro. O som da violência ficava para fora daquele lugar, pois daquele ponto era possível observar a devastação diante de um privilégio perigoso. Era naquele momento o artista virava a câmera para si e sorria e o vídeo recomeçava e permanecia em loop infinito na exposição citada na reportagem do Canal Arte 1.

Certamente, este Ícaro dos tornados deve de ter outras ocupações em sua carreira artística e eu apostaria que este evento pode ter sido apenas uma fase isolada em sua vida. De toda forma, ficou claro para mim que estes eventos têm um ponto em comum com a calma que podemos experimentar em locais como o litoral de Santa Catarina, onde pelo que se sabe não tem tornado nenhum acontecendo agora e esperamos que continue assim.

E isso era tudo o que eu tinha para falar sobre tornados.

sábado, 8 de maio de 2021

Crônica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami

Crônica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami

               A primeira edição do romance “Crônica do Pássaro de Corda”, de autoria do escritor japonês Haruki Murakami, saiu no Brasil pela editora Alfaguara no ano de 2017. Com tradução do Japonês de Eunice Suenaga, tradutora de outras obras do autor, como o “Romancista como Vocação” (2017) e “O Incolor Tsukuru Kasaki e Seus Anos de Peregrinação” (2014), o livro físico da “Crônica” é bastante grosso na lombada, possui 766 páginas e é realmente um “tour de force”, como anuncia o comentário na contracapa. No entanto, qualquer cruzamento oceânico abandona outra margem e deixa para trás um antigo mundo. As impressões deste livro são “mágicas”. 

               Crônica do Pássaro de Corda é um livro impressionante. É até mesmo difícil escrever com isenção, dada a força com a qual esta obra me tomou, pois os personagens mesclam-se à narrativa instituindo um clima de suspense ininterrupto, construído sob a atmosfera de mistério diante de uma cadeia de eventos indissociáveis que, embora pareçam aparentemente desconexos, revelam por fim, sob crescente violência, um toque de terror psicológico que une em arco toda a narrativa.

               A violência, no entanto, e a bem que se diga, não é a violência explícita, exposta e abundante sob a formas de socos, armas e pontapés (embora haja um pouco disso também). Mas uma violência “simbólica”, por assim dizer, se apresenta. É a história de um homem em busca de redenção em certo momento de sua vida diante do aparecimento de eventos bastante insuspeitados para ele. Podemos resumir o começo de tudo isso mais ou menos assim:

               Por volta de seus trinta anos, Toru Okada ficou desempregado. Isso não foi nenhum problema, pois ele e Kumiko, sua esposa, tinham reservas suficientes para se manterem por um bom tempo e Toru parecia precisar mesmo de um tempo, pois vivia bastante apático diante da carreira na área do direito que seguia, para a qual seu desempenho era totalmente indiferente.

               Tendo dito desta forma, parece mesmo a introdução de um livro comum, mas este é o resumo apresentando apenas as três primeiras páginas do romance. A partir daí, tudo toma um colorido impressionante. Pois com este pequeno acontecimento banal (ficar desempregado), o autor deixa o personagem livre para viver as várias aventuras para as quais será chamado durante o restante da narrativa.

Toru Okada vai se encontrar com personagens cada vez mais significativos, como, por exemplo, May Kasahara, uma intrépida vizinha adolescente, ou Malta Kanô, uma mulher com uma estranha profissão e que também tem uma irmã com nome de ilha; o primeiro tenente Mamiya, ex-combante da guerra entre Japão e Rússia pela posse da Manchuria, na China, bem como seu algoz, o tenente coronel russo Boris. Além destes, o intrigante Noboru Wataya, seu cunhado estranhamente perturbado. Este é um panorama mínimo de personagens. A abundância de detalhes fornecida por Murakami e a forma com a qual tudo isso se prontifica como narrativa fazem deste livro uma exploração interessante de tipos humanos urbanos, em nível quase lendários. 

               Quanto à narrativa propriamente dita, o livro causou-me a impressão, como já disse, de uma redenção. Toda a mítica história que envolve um poço traduz de forma altamente simbólica a condição de Okada. Estou tentando ser descritivo sem antecipar nada fundamental na narrativa, para aqueles que quiserem ler, mas é impossível falar desse livro sem falar deste poço, ou da imagem do poço, já que este símbolo aparece na narrativa mais de uma vez, sob a forma de poços diferentes.

               Estar no fundo do poço ou encontrar uma condição na qual o fundo do poço estaria presente é a grande imagem que resume a narrativa deste livro. No entanto, como se fosse um grande poema, uma reverberação em imagem da totalidade da narrativa, a mensagem do fundo do poço não se apresenta piegas como metáfora de tristes condições. Pode-se dizer que o fundo do poço é um personagem deste grande livro. Algo realmente difícil de descrever, mas facilmente perceptível no decorrer da narrativa.

Trecho:

               — Na ópera, o príncipe e o caçador de pássaros vão ao templo guiados por três damas sobre uma nuvem. Na verdade, o que está em jogo é uma luta entre o mundo do dia e da noite. O mundo da noite está tentando recuperar a princesa capturada pelo mundo do dia. No meio da história, os personagens ficam sem saber qual dos mundos tem razão. Ficam sem saber quem está preso e quem não está. Claro que no final o príncipe recupera a princesa, Papageno recupera Papagena e os vilões vão para o inferno...— disse Noz-Moscada, limpando a borda da taça com a ponta do dedo. — Mas por enquanto você não tem a companhia do caçador de pássaros, nem a flauta mágica, nem o carrilhão.

— Eu tenho o poço — disse.

Você ainda precisa conseguir seu poço — respondeu Noz-Moscada, sorrindo, como se estendesse com delicadeza um lenço de boa qualidade. — Mas tudo tem seu preço. (Parte III, cap. 10, pg. 512).


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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

As Aventuras de Alice no País das Maravilhas


As Aventuras de Alice no País das Maravilhas,
de Lewis Carroll

            Chegou a hora de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Queria ler este livro há bastante tempo. Depois de anos na estante — até poeira na lombada tinha — surgiu uma oportunidade por estes dias e consegui. A foto acima corresponde à primeira edição da Coleção Fábula, realizada pela Editora 34 (São Paulo – 2016). Não é um primor editorial, mas o trabalho gráfico ficou muito bacana, principalmente devido às quarenta e duas ilustrações de época (1864) desenhadas por John Tenniel (falaremos delas depois). A impressão dos tipos é cuidadosa e firme, apoiada em papel amarelado de gramatura espessa, o que ajuda em muito a experiência de leitura. A capa de um amarelo vibrante dá uma boa dica do que virá. O texto não é longo, embora não seja tão fluido quanto eu gostaria. 

As Aventuras de Alice no País das Maravilhas é um destes clássicos inevitáveis. Inevitáveis mesmo, pois muito provavelmente você já deve ter topado com alguma referência retirada de suas páginas, seja em desenhos animados, filmes, citações e até mesmo em comerciais de TV. Essa popularização do universo de Alice criado por Lewis Carroll pode ser explicada por sua capacidade de associação. A simbologia usada no livro torna possível filiar as imagens da história a um sem-número de interpretações e usos.  Um coelho atrasado que não dispõe de tempo para ajudar ninguém, um chapeleiro maluco que não diz nada com nada durante um interminável e estranho ritual e uma rainha que resolve qualquer aborrecimento mais mínimo mandando decapitar seu contrariador são metáforas para inúmeras condições psicológicas, passíveis de compreensão mediante a observação destes personagens. Além de tudo, o universo de Alice é colorido e vibrante. 


A cena da entrega do convite - desenho de John Tenniel

Um dos pontos altos para mim (além da cena do Gato, é claro. É impossível ficar indiferente à cena do Gato!) foi a cena da entrega do convite. Podemos falar desta cena sem cair em spoiler. Alice estava em frente a uma determinada casa, quando viu um servo-peixe da Rainha chegar à porta com um convite no formato de carta, quase do seu tamanho, para entregar à Duquesa. Quem recebe o convite é o servo-sapo, da Duquesa. Ambos estão muito bem vestidos, com paramentos vitorianos, e ao se inclinarem para os cumprimentos, as cabeleiras se embaraçam. Eu lembro de ter achado essa cena bastante engraçada, dado o ridículo de toda aquela pompa envolvendo peixes e sapos. Para uma criança, certamente a gravidade das solenidades deve estar muito bem representada aqui.

Técnica de preenchimento -
trecho de quarto com janela
e detalhe da saia de Alice. 
Os desenhos de John Tenniel são um caso à parte. Eu não sei o nome da técnica empregada, mas adoro quando a textura dos desenhos são preenchidos com traços, criando a impressão de volume pelo cruzamento de várias linhas, sob a forma de um jogo-da-velha de infinitas quadrículas pequenas. É um desenho que o contorno é o próprio preenchimento. Acho incrível esta técnica. Demanda um tempo imenso para sua concepção, e não é preciso ser desenhista para chegar a esta conclusão. Sem contar o cuidado e a riqueza de detalhes resultante. Um artista contemporâneo que costuma aplicar esta técnica é Robert Crumb, de quem algum dia resenharemos alguma obra.

Finalmente, gostaria de dizer que não gostei tanto assim da leitura como eu esperava. Sabe aquela história de que o bom da festa é esperar por ela? Acho que isto se deu no meu caso. Não adianta, meu conselho para você que quer ser um bom leitor é gostar daquilo que te encantou, e não gostar de algo simplesmente por ser clássico. Eu reconheço a grandeza de Alice e as imagens são impressionantes, em alguns momentos eu realmente fiquei boquiaberto. Seu valor psicanalítico, por assim dizer, também é indiscutível. A riqueza de imagens e as possibilidades de interpretação são maravilhosas, eu consegui ver tudo isso.




Mas aconteceu de eu não gostar tanto assim da história. Isso às vezes pode se dar com qualquer um.  Talvez um dia eu revisite e espero ver com outros olhos As Aventuras de Alice no País das Maravilhas.  

Três Alices: Alice Liddell,  a jovem para quem o livro foi originalmente escrito;
Alice do clássico desenho da Disney e a atriz Mia Wasikowska, assumindo o papel de Alice
no filme dirigido por Tim Burton


TRECHO:

“— Comece pelo começo — disse o Rei com ar muito grave — e continue até chegar ao fim: então pare."

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domingo, 19 de agosto de 2018

"O Nome da Morte" - Filme

O NOME DA MORTE
Cartaz do Filme

Livro do Jornalista
Klester Cavalcante

"O Nome da Morte" narra a história miserável de Júlio Santana, um pistoleiro de aluguel que declarou ter matado 492 pessoas. O jornalista Klester Cavalcanti contou sua história em livro (foto ao lado), que por sua vez foi adaptado para o cinema por Henrique Goldman, diretor que parece possuir vocação para contar histórias biográficas, dedutível por suas produções anteriores (Princesa (2001), que conta a luta de um travesti brasileiro para mudar de sexo e casar com um europeu, e Jean Charles (2009), que conta a trágica história do brasileiro morto a tiros por engano em Londres, confundido com um terrorista pela polícia inglesa).

Não posso focar no livro, que ainda não li, mas assisti ao filme na última terça-feira (14/08/2018) e saí do cinema com uma forte impressão de ter presenciado uma história muito bem contada. Todo mundo já assistiu algum filme sobre assassinatos, tema bastante recorrente no cinema. Mas ver o tema do matador de aluguel, ou pistoleiro, baseado em fatos reais, exposto do começo ao fim como uma lida meramente profissional deixa você boquiaberto do começo ao fim, Não há motivações pessoais nos assassinatos praticados pelo protagonista, e essa dissociação entre trabalho e ética o torna quase desumano. Este tipo de personalidade rara, desvinculada de qualquer razão motivadora para fazer o que faz, parece simbolizar a história de um louco.  

De toda forma, é um bom filme. A fotografia é limpa, sem grandes trucagens; o som perfeito, a atuação dos protagonistas é muito boa e falha apenas na performance de alguns atores menores. No entanto, quanto a estes atributos técnicos prefiro não me aprofundar muito, pois não é minha área de atuação. Quanto ao roteiro, posso dizer que “grudei” na cadeira. O clima soturno ambienta o filme todo. A cada passo do protagonista, uma nova faceta do pistoleiro é desvendada, e sua forma de se relacionar com o fenômeno morte diante de um “serviço” de encomenda torna tudo muito fascinante, pois um personagem grotesco começa a se insurgir diante de nós durante o filme, um verdadeiro adversário do direito à vida, e tudo isso amparado pelo simples fato de ganhar dinheiro. Este tabu, que se relaciona com nossa parte mais grotesca através de um fetiche em observar tais coisas acontecerem, impera em nosso interior sobrepujado por alguma percepção de uma justiça que não se completa, até que em certo momento do filme não se espera mais nada como alternativa, e o que se vê é a história do homem que está entre os mortos, sendo ele mesmo, o tal Júlio Santana, O Nome da Morte.

Não pretendo traçar nenhum detalhe sobre as cenas do filme, para evitar spoilers. Confira e veja. No entanto, um aviso prévio: se você está em busca de uma história edificante, este não é o caso. Não é um filme de suspense; é um filme de terror, que vale o ingresso.

É isso. Bom filme.

Os atores Marcos Pigossi e Matheus Nachtergaele
em cena do filme
Em tempo: quem se interessar por uma boa resenha sobre o livro de Klester Cavalcante, eis uma muito boa, escrita pela jornalista Fernanda de Freitas: https://goo.gl/w3v6u2

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terça-feira, 15 de agosto de 2017

Sobre a arte grotesca

Materiais para intervenção do público



No último domingo, fiz uma rápida visita ao CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), em Belo Horizonte, onde se encontra em cartaz a exposição “O Corpo é a Casa”, do austríaco Erwin Wurm. A exposição começa com a seguinte proposta: “você mesmo pode ser uma obra de arte”. Para que isso possa se comprovar, deixa-se à disposição dos visitantes uma porção de utensílios como: uma cadeira, materiais de limpeza, lençóis sujos com travesseiros e outras coisas deste tipo. A partir de então, mediante uma sugestão (como, por exemplo, colocar a cadeira sobre a cabeça), você pode tirar foto em posições inusitadas e tornar a si mesmo um “objeto de arte”.

Mais à frente, a exposição mostra coisas como um conjunto de suéteres vestidos em uma caixa ou uma cômoda antiga de sala de TV, feita em algum material semelhante à borracha, atravessada e deformada por pneus. Uma coleção de pepinos exposta junto à foto de uma mulher babando sobre uma xícara de café e uma sala que repetia à exaustão um mesmo clipe da banda americana Red Hot Chilli Peppers completavam parte do cenário.

Nas "Esculturas de Um Minuto",
 é possível seguir a sugestão do artista,
desenhada ao lado da obra
(foto tirada da internet).
A proposta que vigora em trazer para ambientes como Galerias de Arte um objeto inusitado (como um urinol, por exemplo) e, assim, transformá-lo em obra de arte, simplesmente por estar em um lugar onde possa ser apreciado como tal, é como dizer que tirar um boi de um pasto e levá-lo a um alfaiate seria o mesmo que transformá-lo em um gentleman. O que faz a obra de arte, em meu entender, não é o ambiente de exposição ou a interação que se possa ter com um objeto, mas sua relação com o sublime ou o grotesco.

Victor Hugo foi um escritor francês (autor de “Os Miseráveis”) que teorizou a arte durante o nascimento do romantismo francês. O grotesco, no caso apresentado por ele, seria algo como a Fera, de a “Bela e a Fera” ou o “Corcunda de Notre Dame”, “Frankestein”, “Drácula” ou ainda as horrendas figuras do “Inferno”, de Dante. Todos estes exemplos reportam a um imaginário bestial, mas configurados em um cenário no qual dialogam com o sublime, mesmo que em termos opositores, ou, como ele mesmo diz: o grotesco no reverso do sublime. Diferentemente disto, um suéter com o qual se veste uma caixa ou uma porção de materiais de limpeza presos às axilas são simplesmente exercícios criativos...e feios.

A criatividade por si só não pode suplantar a arte. Se assim fosse, toda criança seria um artista. Embora tenhamos essa sensação, surgida do amor que sentimos pelas nossas crianças, sabemos que isto não é assim. De maneira semelhante, uma relação criativa com um objeto — como fazer um carro ficar “gordo” aplicando fibra plástica ou usar gesso para esculpir uma “casa de nuvem” — apontam em favor de uma noção interpretativa demais, muito criativa, e, devido mesmo a isso, dissociadas das obras de arte em um sentido verdadeiro. A arte sempre necessita de criatividade, e mesmo é vista como criação. Mas a parte puramente criativa da arte não passa de exibicionismo lúdico e não é capaz de produzir a “catarse” real — no dizer dos antigos gregos — que a obra de arte tende a provocar em nossas sensações e mentes.

Carro Gordo
Por fim, preciso dizer em defesa do CCBB-BH que recentemente assisti naquele espaço a uma peça de teatro maravilhosa, “Sobre Ratos e Homens”. Também lá pude ver uma exposição incrível, que flerta bastante com a noção do grotesco citada acima. Trata-se da exposição ComCiência, de autoria da também austríaca Patricia Piccinini, uma das exposições mais vistas das últimas décadas, atraindo inclusive pessoas que não tem o hábito de visitar galerias de artes. Além de ter a oportunidade única de ver, no Brasil, as obras abstratas de Kandisky, e por isso só tenho mesmo a agradecer ao CCBB-BH.


Obviamente, existem obras abstratas reais, que podem ser apreciadas e devem ser respeitadas, pois o “bom gosto” e o “bom senso” vigorando como preconceitos também podem ser bastante prejudiciais ao verdadeiro entendimento. 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

"Sermões", de Padre Antonio Vieira

Sermões - Tomo II

Saudações.

A foto acima corresponde ao Tomo 2 da bem cuidada edição dos Sermões do Padre Antonio Vieira realizada pela Editora Hedra. Constam nesta edição cinquenta sermões do Padre Antonio Vieira, divididos em dois volumes, dos quais vinte e cinco estão elencados neste tomo 2. A capa é a da foto acima. A obra é bem acabada, composta com papel ligeiramente amarelado, mas com a fonte impressa de forma clara e legível, embora um pouco pequena (expediente necessário, pois mesmo assim o volume ficou bem largo na lombada). 

As belíssimas argumentações de Vieira têm sido objeto de admiração desde sua aparição, no séc. XVII. Conquistou apreciadores de peso, como o poeta Fernando Pessoa, que dizia de Vieira o “Imperador da Língua Portuguesa”, um “gênio de perfeição linguística”. Nisso também encontramos eco em diversos autores, como o também poeta Manoel de Barros, que cita o deslumbramento causado pela leitura de Vieira na juventude. E podemos dizer que desde sempre foi assim, pois consta defesa de tese sobre seus sermões na Universidade do México em 1683, com o autor ainda vivo.

Todo o colorido das barrocas argumentações de Padre Antonio Vieira nos conduzem a um estado de indescritível observação da beleza. Ao serem desvendadas camadas e mais camadas de argumentações retóricas, sustentadas por uma capacidade de estilização característica do período barroco, mas sem ornamentação gratuita, vemos muitas vezes, o sentido aparecer claro duas páginas após o início de uma argumentação. Para ilustrar, ocorrem-me duas imagens: aqueles exercícios matemáticos de expressões algébricas, nos quais tínhamos que resolver
Volutas
primeiramente os parênteses, depois os colchetes e, por último, as chaves. Vieira abre muitos parênteses em suas argumentações — digressão em harmônicos, vale dizer —, mas sabe como ninguém encadeá-los de forma a não se afastar demais, a ponto de haver perda do sentido da leitura. E há resultado final na forma de uma síntese, ou uma “chave de ouro”, geralmente utilizada por ele. A outra imagem é barroca e me recorda as volutas do período Barroco/Rococó, presente em muitas obras arquitetônicas daquela época, ilustrada aqui pela foto ao lado. As volutas são belas e voluptuosas, mas se estendem e retornam nosso olhar desde um centro fixo, ponto de confluência de sua direção, até o desenlace integral de suas belas formas. No entanto, outra imagem ainda pode ser útil: os textos de Vieira são como belíssimo rio, de sinuoso fluxo e que — segui-lo — vai dar exato ao mar.

De toda forma, são sermões, não esqueça. É um homem que soube ler seu tempo. Supreendentemente, a metafísica dos textos de Vieira, sendo ele um padre, aparece muito pouco. Posso afirma que a metafísica do Padre Antônio Vieira ocorre por instrumentação estética. Explico: é como se o uso da linguagem absorve o leitor da experiencia mundana e o lançasse em outra esfera de significado. Até aí, tudo bem, pois todo bom autor é capaz de fazer isso, mas Vieira faz isso através de um domínio tão arguto da língua portuguesa, que a própria estruturação do discurso argumenta. Você quase não precisa de esforço para entender a lógica de Vieira. Ao final da leitura, a benção do autor é a capacidade de clareza de pensamento deixada como legado, e o exato exprimir de uma ideia é capaz de nos permitir viver melhor. Neste sentido, Vieira é um salvador entre os homens. 

TRECHO

"(...) Da Madalena disse Cristo: Quoniam dilexit multum [porque muito amou]o amor que parece muito a Deus grande amor é. Mas que teve de grande este amor? Lágrimas, e de uma mulher? Muitas choram, e facilmente. Quebrar o alabastro? Os mármores se quebram por si mesmos na morte de Cristo. O preço do unguento? Só na avareza de Judas foi grande preço. Enxugar os pés do Senhor com os cabelos? Mais faria se os cortara. Onde está logo a grandeza daquele ato? Onde está o muito daquele dilexit multum? [muito amou] S. Pedro Crisólogo o observou agudamente em duas palavras do texto: Stans retro [por detrás]Tudo o que a Madalena fazia, não era aos olhos, senão às espaldas de Cristo: retro - e neste modo de servir consistiu o muito do amar. O ver e não ver em Deus só se pode verificar na pessoa de Cristo. Cristo com os olhos da divindade via a Madalena, mas com os olhos da humanidade não a via; e como ela chorava e ungia, servia e amava não como Deus a via, senão como Deus a não via: stans retro - nela se verificou à letra: Servir a Deus que nos vê, como se o mesmo Deus nos não visse. Por isso o seu amor por boca do mesmo Deus foi canonizado por heroico, que no conceito de Deus só o heroico é muito: Stans retro, dilexit multum [por detrás dele, muito o amou].”


(VIEIRA, Antonio. Sermão da Quinta Feira da Quaresma, in: Sermões – Tomo II. 1ª edição. São Paulo: Editora Hedra, 2014. p 179 e 185)

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